sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Entrevista com Dmitri Rogozin parte 2 de 2

Revista VEJA, 24 de Setembro de 2008

A Rússia anunciou que vai fazer, ainda neste ano, manobras navais com a Venezuela, as primeiras no Caribe desde o fim da Guerra Fria. Na semana passada, aviões russos já realizaram exercícios militares na região. Trata-se de uma resposta ao escudo antimíssil e à presença da OTAN no Mar Negro?

O porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Rússia informou que a decisão de mandar uma esquadra para a Venezuela precede o conflito com a Geórgia. Quanto às relações entre a Rússia e a OTAN, de fato não estão muito boas. Esperávamos uma posição mais clara e sincera da organização sobre os assuntos no Cáucaso. Se a Otan mantiver a ajuda militar, política e moral às agressões da Geórgia contra os pequenos povos do Cáucaso, não poderemos considerá-la nossa parceira.

Isso pode significar o início de uma nova Guerra Fria entre a Rússia e o Ocidente?
Graças a Deus, não acredito que possa começar uma nova Guerra Fria. A Rússia não tem interesse nisso e espero que nossos parceiros também não. Mas, se a OTAN quiser continuar a existir, terá de se modificar. A OTAN (criada após a II Guerra Mundial para fazer frente à União Soviética) não pode continuar sendo uma aliança em bloco como é hoje. Devemos neutralizar todos os esforços para a manutenção na Europa das linhas vermelhas (uma fronteira estratégica traçada por Moscou após o fim da União Soviética, englobando países de sua esfera de influência). Se não houver uma relação muito estreita entre a Rússia e os europeus, não se poderá construir a paz a longo prazo. Os russos sempre serão obrigados a manter uma postura defensiva em relação ao Ocidente.

O senhor comparou Saakashvili a Gavrilo Princip, o sérvio que matou o arquiduque da Áustria, em 1914, dando início à I Guerra Mundial. Não é um exagero retórico?
Até recentemente, pensávamos que éramos capazes de evitar conflitos na Europa. Agora, não podemos mais ter essa certeza. Os acontecimentos na Geórgia demonstraram que uma única pessoa pode destruir o mundo. A arquitetura da paz construída após a II Guerra Mundial não existe mais. Há que se discutir um novo caminho para garantir a tranqüilidade no continente.

Quando começou o conflito na Geórgia, os Estados Unidos ameaçaram dificultar a entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa possibilidade preocupa os russos?
Neste momento, a entrada na OMC não é o objetivo principal da Rússia. Tudo depende das condições impostas para o nosso ingresso. Está claro que as condições para a nossa entrada na OMC não são as mesmas exigidas de outros países. Há aí um exemplo da discriminação contra nós. De qualquer forma, nossos produtos mais importantes são petróleo e gás natural. Como não temos concorrentes nesse setor, não ser aceito na OMC está longe de representar um grande problema para a Rússia. Podemos esperar.

Numa reunião de emergência, no início do mês, os governantes da União Européia decidiram não impor sanções contra a Rússia, como punição pela guerra na Geórgia. O que isso revela sobre as relações entre a Europa e a Rússia?
Uma parte da Rússia está e sempre estará dentro da Europa. Não é mais possível dividir a Europa em duas partes. A Rússia tem relações econômicas profundas com a União Européia. Por isso, medidas-bumerangue, que vão e voltam com a mesma intensidade, não podem ser lançadas contra nossos interesses. Eventuais sanções contra a Rússia seriam sanções contra a própria Europa.

A União Européia parece ter medo de que a Rússia corte o fornecimento de gás natural para os países do bloco.
Nós não podemos retaliar ninguém no campo das relações energéticas, porque, da mesma forma que a Europa é dependente do petróleo e do gás natural da Rússia, nós dependemos dos europeus para que comprem esses produtos. Como partilhamos interesses, a Rússia jamais discutirá o problema nesses termos.

As relações de seu país com a OTAN foram suspensas, mas a Rússia manteve a cooperação com a aliança no Afeganistão. Por quê?
Porque no Afeganistão temos uma ameaça que é o movimento talibã. Como o terrorismo fundamentalista também preocupa a Rússia, o talibã é um inimigo comum.

Por que é tão ruim para a Rússia que a Ucrânia ou a Geórgia entrem na OTAN?
No caso da Ucrânia, é preciso deixar claro, antes de mais nada, que o povo não quer a entrada do país na aliança militar ocidental. As pesquisas de opinião mostram que 70% da população é contra. Seria, portanto, uma decisão antidemocrática. Para nós é ruim porque a Ucrânia e a Rússia são partes de uma mesma família. Temos uma ligação histórica, de um povo dividido em dois países. Por isso, Ucrânia e Rússia não podem estar em diferentes blocos. Ou ingressamos ambos na Otan, ou nenhum dos dois entra. Além disso, a Rússia tem uma base naval em Sebastopol, na Criméia. Em 1997, fizemos um acordo com a Ucrânia para manter a base ali. Sebastopol serve ao mesmo tempo como uma base e uma cidade russa. Ninguém pode imaginar o destino do lugar sem a presença da nossa frota. Quanto à Geórgia, Saakashvili organizou um referendo há oito meses para decidir sobre a entrada na Otan, mas sem a participação da população da Ossétia e da Abkházia. Oficialmente, 70% votaram a favor da Otan. A verdade é outra, porque o referendo não contou com o voto de metade do povo georgiano. Os ossetas e os abkhazes também não querem entrar na aliança ocidental. Para completar, na Otan há uma regra: é proibido convidar países com disputas territoriais internas para participar da organização.

Quem manda na Rússia: o primeiro-ministro Vladimir Putin ou o presidente Dimitri Medvedev?
Ninguém conhece, de maneira profunda, as relações existentes entre Medvedev e Putin. São amigos e, por isso, teremos a continuação da política elaborada por Putin. Medvedev é jovem, inteligente e tem suas próprias opiniões sobre política interna e externa. O caminho que o país está seguindo, no entanto, é o da política de Putin. Pode-se dizer que Medvedev é um pouco mais moderado, pelo menos na maneira de administrar as coisas.

Uma reportagem do jornal americano The New York Times diz que o senhor tinha um retrato de Stalin em seu escritório em Bruxelas. Em uma visita aos Estados Unidos, o senhor o teria dado de presente ao ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger.
Essa foi uma piada que o repórter do jornal levou a sério. Eu tenho no meu escritório retratos de Putin, Medvedev e do ministro das Relações Exteriores de meu país. Nunca dei nenhum retrato de Stalin a Kissinger.

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